Milícias são perigosas. São grupos criminosos. E em hipótese alguma podem ser tratados como “justiceiros” ou “heróis do povo”.
Assim se considerava o cabo Heleno Arnaud Carmo de Lima, o Leno, preso nesta quarta-feira (30). Muitos outros milicianos se conceituam e se apresentam dessa forma.
Se autoproclamando combatentes do crime, propondo resolver problemas que a polícia não poderia resolver, por vias legais regulares, as milícias se instalaram, inicialmente, no Rio de Janeiro.
Lá, se tornaram um dos principais obstáculos da segurança pública do país; são grupos que apenas tomaram o lugar de traficantes comuns e então estabeleceram um novo “modelo de negócio” criminoso.
O mesmo problema está instalado no Pará.
Paraenses que não conhecem muito bem a realidade da violência no Rio de Janeiro, provavelmente devem ter ouvido o termo milícia, pela primeira vez, no filme “Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora É Outro”.
Contudo, faz alguns anos, esse termo passou a ser usado, formalmente, pela Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) no Pará.
O termo sempre esteve associado às chacinas e algumas execuções com indicativos de armas de policiais e treinamento específico e especializado.
Desde a operação “Navalha na Carne“, em 2008, ficou claro que havia milícias no Pará. Até então, o termo mais usado era “grupo de extermínio” ou “grupos paramilitares”, entre outras nomenclaturas.
No mesmo ritmo, os “assassinatos do carro prata” se tornavam cada vez mais comuns.
Entre a noite de 4 e a madrugada do dia 5 de novembro de 2014, o cabo Antônio Marcos da Silva Figueiredo, conhecido como cabo Pet ou Pety, foi assassinado.
A partir daí desencadeou uma sequência de assassinatos que ficaram conhecidos como “Chacina de Belém”. Além do cabo Pet, outras nove pessoas morreram. Algumas sem qualquer motivação; apenas estavam em ruas de bairros periféricos.
O policial foi apontado como chefe de uma das principais milícias dos bairros Guamá, Terra Firme, Jurunas, Condor e Cremação. Prestava serviços ilegais de segurança privada e assassinato sob encomenda.
Cabo Pet não era diferente de cabo Leno.
A diferença é que Leno, segundo a Polícia Civil, estava sediado nas áreas de entrono da Pedreira, um pouco mais afastado de um núcleo de concentração de milícias. Só que Leno já era considerado o maior miliciano Pará.
O que são as milícias e o que fazem
Na prática, milícias são grupos armados, quase sempre formados por policiais, militares das forças armadas e/ou ex-policiais e ex-militares.
Não é raro que, no meio desses grupos que se dizem justiceiros, há pessoas que nunca pertenceram a qualquer órgão de segurança pública, mas compartilham de determinados ideais de poder. Ou sabem lidar muito bem com o submundo da criminalidade.
Há, mesmo entre os milicianos, “criminosos comuns”, o que não signifique que as milícias não sejam grupos criminosos.
As milícias existem onde o poder público é ausente. Ou presente de uma forma precária e quase conivente com a criminalidade, como aponta o geógrafo e especialista em Planejamento Urbano Aiala Colares, do grupo Observatório de Estudos em Defesa da Amazônia, da UFPA.
As milícias se apropriam de necessidades da população, sobretudo em segurança pública. Não é muito diferente de como facções criminosas, como o Comando Vermelho Rogério Lemgruber, ou CVRL, o grupo que costuma assinar pichações “proibido roubar na comunidade”.
A “Chacina de Belém” motivou a CPI das Milícias, na Assembleia Legislativa do Estado do Pará (Alepa).
Após várias investigações, tomadas de depoimentos e análises de boletins de ocorrência, ficou escancarado que esses grupos criminosos, autodenominados “justiceiros”, haviam loteado territórios de Belém e se expandiam em municípios do interior.
Nas áreas rurais, a organização desses grupos oficializa o serviço de “jagunço”. Está intimamente ligada à grilagem de terras e demonização de movimentos sociais em favor do trabalho e da distribuição de terras.
Nos centros urbanos, principalmente Belém, são encontrados grupos de narcomilícias. É o modelo mais próximo das milícias do Rio de Janeiro e retratadas no filme “Tropa de Elite 2”.
Os bandidos que se chamam de “justiceiros” expulsam os traficantes e tomam deles o controle do tráfico. Isso mesmo: justiceiros continuam traficantes.
Além da renda do tráfico, as narcomilícias ainda se remuneram da oferta de serviços ilegais diversos, como patrulhamento nas ruas, ligações clandestinas de luz, água, internet e TV por assinatura – a preços muito mais baixos que os serviços legais e regulares -, comércios, transporte público e até habitação. Oferecem o que os traficantes não oferecem por uma certa proximidade com o poder público.
Isso revela a carência das comunidades que as milícias ocupam. Por isso Aiala diz que a presença de facções criminosas comuns e milícias não deixam de ser uma conivência do poder público com o crime.
Pela movimentação financeira e perpetuação de negócios, muitos milicianos apoiam campanhas políticas, para ter conexões com o poder público.
O vereador Marcello Siciliano (PHS-RJ) e o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ)são dois nomes que começaram a ser vinculados a milícias do Rio de Janeiro, sobretudo ao Escritório do Crime, a maior e mais perigosa.
Integrantes dessa milícia tinham proximidade com os dois políticos. Essa milícia é a suspeita de ter executado a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e o motorista que trabalhava para ela, Anderson Gomes, há 11 meses.
Todos os “benefícios” trazidos pelas milícias, que deveriam ser políticas públicas formais, têm preço. Muitas vezes, as milícias cobram coercitivamente valores que ultrapassam o poder aquisitivo das comunidades.
Fazem ameaças veladas para quem não quer contratar a segurança, como dizer “olha, se você não pagar a segurança, não tem como garantir sua integridade”, o que resulta em assaltos e outros crimes diversos. Até que a pessoa pague. A milícia cobra para proteger a população da própria milícia.
As milícias da Região Metropolitana de Belém fizeram um “marketing do terror e do medo”.
O “carro prata” – de vez em quando carro preto ou carro branco – se tornou a marca das milícias. Na maioria dos casos, quem morria estava envolvido em crimes.
Entretanto, houve casos de pessoas que não eram mais criminosas: pessoas que cumpriram a pena na cadeia e mudaram de vida. Mesmo assim morreram. Vários inocentes morreram também graças às milícias.
Quando a morte de uma pessoa não era de interesse da milícia, o custo de uma vida variava de R$ 1 mil a R$ 10 mil, dependendo do grau de importância e complexidade do crime.
As execuções sequenciais e múltiplos tiros também se tornaram uma marca, com precisão de quem tem treinamento. E as poucas pistas sobre quem cometia as execuções eram de pessoas fortes, de coturnos e capuzes (balaclavas).
Quando cápsulas de munição eram encontradas, sempre eram dos calibres ponto 40, ponto 380 e em alguns casos nove milímetros. Todos de uso restrito de policiais e forças armadas.
Nada heróicos
Outra característica das milícias é a covardia e o racismo no próprio modo de agir. Não há pessoas brancas e ricas, que também compõem categorias criminosas. São sempre pessoas negras e pobres.
As milícias não resolvem nada no que diz respeito a segurança pública. Nunca resolveram. Apenas pioram a situação, mantendo o terrorismo permanente nas áreas marginalizadas que costumam tomar como território.
De quando em quando, áudios de milicianos circulam pelas redes sociais digitais.
Espalham terror e mostram que os justiceiros falam de uma forma que os aproxima muito dos criminosos que dizem combater. Palavrões, ameaças, códigos, toques de recolher… todo tipo de vulgaridade e até discordância da própria polícia.
É contraditório, mas os justiceiros não gostam muito de policiais que fazem seu trabalho de forma correta. O mesmo vale para parlamentares, líderes comunitários, movimentos sociais. Quem interfere nos negócios das milicias, morre.
Essa é a principal suspeita de quem matou Marielle (e Anderson, como colateral) e por quê. Se não morrer o alvo vive sob ameaça até que a vida seja insuportável.
Pouco antes de ser preso, nas redes circulou um áudio de Leno, chamando policiais civis que combatem milícias de “filhos de puta”. As mesmas ameaças e ofensas eram feitas contra a imprensa.
Leno dizia que ia matar.
E não conseguia enxergar por que outros bandidos passaram a retaliar contras as milícias, tornando as ruas de Belém no palco de uma guerra urbana.
Muitas mortes de policiais – não todas, que fique claro – revelam alguma proximidade da vítima com milícias.
A milícia comandada por Leno foi apontada como responsável pela chacina que ocorreu no na chacina dos dias 20 e 21 de janeiro de 2017.
Na ocasião, 30 homicídios foram registrados em 16 bairros de Belém, Ananindeua, Marituba e Benevides. Destes, 25 seriam retaliação direta à morte do soldado Rafael da Silva Costa, morto em ação, no dia 20 de janeiro de 2017, no conjunto Panorama XXI. Vários dos mortos não tinham qualquer ligação com crimes.
Durante as investigações, que começaram logo após a chacina de janeiro, o mesmo grupo foi responsável por pelo menos mais 17 homicídios e 6 tentativas de homicídio.
Um dos sobreviventes da chacina, cinco dias depois, sofreu outro atentado.
Os “carros pratas” apreendidos condizem com os relatos comumente colhidos em locais de crimes com indícios da participação de milícias: Honda Civic, Honda City e Fiat Punto.
Muitos desses policiais que acaba em milícias são reflexos de muitos problemas no sistema de segurança pública, que vai desde a formação dos policiais.
Os treinamentos são brutais, crueis e porvezes traumáticos. Pouca formação técnica e teórica é dada.
Assim, muitos polciais formados desconhecem as raízes da violência e não aprendem a combatê-la. Aprendem apenas a reprimir e prevenir através da repressão.
Pela hierarquia militar, quanto mais baixa a patente, menor a remuneração e muito superior é o risco e exposição. Para compor renda e aumentar a segurança pessoal, policiais se unem às milícias para a prestação de serviços de vigilância. Os famosos “Bicos”, que são ilegais para o policial da ativa.
Conhecer milícias também é uma via de mão dupla: de um lado, pode prevenir crimes; de outro, aumentar possibilidades de retaliações gratuitas de outros criminosos.
Melhor remuneração aos policiais e melhor formação evitariam a necessidade de serviços paralelos irregulares. Potencialmente, diminuiriam a corrupção entre esses servidores.
Outra forma de ingresso em milícias são policiais expulsos da corporação por mau comportamento.
As origens das milícias na capital do Estado
Depoimentos, colhidos durante a CPI das Milícias, apontam que, em Belém, os primeiros protótipos de milícias foram na Terra Firme, mais precisamente na área do Tucunduba, a partir de 2006.
Antes da milícia do cabo Pet, duas outras começaram uma disputa pelos comércios e serviços ilegais: a Equipe Rex e a Equipe do Jack. Todas essas informações constam no relatório final, que é público e pode ser acessado aqui.
O líder da Equipe do Jack era um homem conhecido como “Jack”. Católico atuante e taxista, vivia com carros do ano o tempo todo. Começou a oferecer uma sensação de segurança às pessoas, dizendo que se alguém causasse qualquer problema, poderia procurar diretamente por ele, que ele mesmo iria resolver e rapidamente.
Pela ausência de uma política de segurança pública eficiente, quem era vitima dos assaltos constantes na área, de fato, passou a procurar por Jack. Bastou algum tempo de atuação para que ele se apresentasse e fosse conhecido como “chefe da comunidade”.
Jack tinha uma ideia de criar um cadastro geral de moradores num centro comunitário. E não escondia a vontade de cobrar a “taxa de segurança”.
No mesmo tempo em que essa ideia se desenrolava, mais e mais mortes eram registradas no bairro. Numa alusão que nada tem a ver com os heróis dos quadrinhos, a milícia de Jack foi apelidada de “Liga da Justiça”.
Em determinado momento, com a expansão do mercado da morte e da falsa segurança, o bando de Jack entrou no território onde outra milícia já atuava, a Equipe Rex, uma milicia composta por bandidos “ditos comuns”.
A Equipe Rex já tinha desavenças com a Liga da Justiça, pois todo o tráfico da Terra Firme estava sendo feito pela equipe de Jack. Mas para todos os efeitos, Jack sempre dizia que o tráfico havia acabado e que a criminalidade estava extinta no bairro.
Quando a guerra entre as milícias se intensificou, as armas de uso restrito das polícias e forças armadas passaram a ser usadas.
Foi aí que a participação de policiais se tornou evidente.
A Equipe Rex, no entanto, tinha uma relação muito mais direta apenas com uma facção criminosa comum: o Primeiro Comando da Capital (PCC).
Comum é apenas uma forma de dizer. É a maior e mais bem organizada facção criminosa do país, que se comporta mais como uma empresa do que como grupo criminoso. É sediada em São Paulo. Só o Comando Vermelho faz frente a esse grupo.
Eventualmente, os líderes das facções do Guampa, Terra Firme, Jurunas, Cremação e Condor foram morrendo na guerra.
Os conflitos nunca estancaram totalmente. Vários comandantes de policiamento deixaram o posto na área devido às dificuldades em manter a segurança onde grupos criminosos estavam tão bem aparelhados. E novos líderes e grupos emergiram.
Um desses novos líderes foi o cabo Pet, que representava a milícia composta por policiais. A especialidade eram mortes por encomenda. Era constantemente contratado pelo vereador Gordo do Aurá para execuções de desafetos. Novamente, ligações de milícias com a política.
Cabo Pet estava afastado da Rotam por licença médica, mas na Rotam tinha vários aliados. Na noite em que foi morto, o sargento Rossicley, da Rotam, convocou policiais a fazer uma vingança.
Eis que a começou a Chacina de Belém.
Em meados de 2007, uma milícia se instalou no distrito de Icoaraci. Muito antes do carro prata, a marca dos milicianos da Vila Sorriso era a moto.
Ao menos 37 assassinatos foram cometidos por esse grupo criminoso, composto, majoritariamente, por policiais montados em motos.
Por estarem sempre de corturno, foram apelidados de “pés pretos”. Foram o principal foco da operação Navalha na Carne.
Fonte: OLIBERAL.COM