Mesmo no século XXI são comuns os episódios diários de racismo, sejam eles físicos ou verbais. No Brasil, por exemplo, segundo o Atlas da Violência, em dez anos a taxa de letalidade de negros cresceu 33%.
O racismo é considerado crime inafiançável e imprescritível, e atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça, de acordo com a Lei 7.716/1989. O crime deixa marcas em que sofre o preconceito, se tratando de crianças, o prejuízo é ainda maior, marcando a saúde, o corpo e o cérebro das vítimas, é o que diz uma pesquisa do Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade de Harvard, que compilou estudos documentando como a vivência cotidiana do racismo estrutural, de suas formas mais escancaradas às mais sutis ou ao acesso pior a serviços públicos, impacta “o aprendizado, o comportamento, a saúde física e mental” infantil.
No longo prazo, isso resulta em custos bilionários adicionais em saúde, na perpetuação das disparidades raciais e em mais dificuldades para grande parcela da população em atingir seu pleno potencial humano e capacidade produtiva.
Embora os estudos sejam dos EUA, dados estatísticos, além do fato de o Brasil também ter histórico de escravidão e desigualdade, permitem traçar paralelos entre os dois cenários. No Brasil, 54% da população é negra, percentual que é de 13% na população dos EUA.
No Pará, a Secretaria Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup) informa que em 2019, de janeiro a setembro, foi contabilizado um registro do crime de racismo e este ano nenhum.
Veja quatro impactos causados em crianças pelo racismo:
1. Corpo em estado de alerta constante
O racismo e a violência dentro da comunidade (e a ausência de apoio para lidar com isso) estão entre o que Harvard chama de “experiências adversas na infância”. Passar constantemente por essas experiências faz com que o cérebro se mantenha em estado constante de alerta, provocando o chamado “estresse tóxico”. Anos de estudos científicos mostram que, quando os sistemas de estresse das crianças ficam ativados em alto nível por longo período de tempo, há um desgaste significativo nos seus cérebros em desenvolvimento e outros sistemas biológicos.
Na prática, áreas do cérebro dedicadas à resposta ao medo, à ansiedade e a reações impulsivas podem produzir um excesso de conexões neurais, ao mesmo tempo em que áreas cerebrais dedicadas à racionalização, ao planejamento e ao controle de comportamento vão produzir menos conexões neurais.
Isso pode ter efeito de longo prazo no aprendizado, comportamento, saúde física e mental. Um crescente corpo de evidências das ciências biológicas e sociais conecta esse conceito de desgaste (do cérebro) ao racismo. Essas pesquisas sugerem que ter de lidar constantemente com o racismo sistêmico e a discriminação cotidiana é um ativador potente da resposta de estresse.
2. Mais chance de doenças crônicas ao longo da vida
Essa exposição ao estresse tóxico é um dos fatores que ajudam a explicar diferenças raciais na incidência de doenças crônicas. As evidências são enormes: pessoas negras, indígenas e de outras raças nos EUA têm, em média, mais problemas crônicos de saúde e vidas mais curtas do que as pessoas brancas, em todos os níveis de renda.
Alguns dados apontam para situação semelhante no Brasil. Homens e mulheres negros têm, historicamente, incidência maior de diabetes 9% mais prevalente em negros do que em brancos; 50% mais prevalente em negras do que em brancas, segundo o Ministério da Saúde.
Os números mais marcantes, porém, são os de violência armada, como a que vitimou as meninas Emilly e Rebeca. O Atlas da Violência aponta que negros foram 75,7% das vítimas de homicídio no Brasil em 2018.
A taxa de homicídios de brasileiros negros é de 37,8 para cada 100 mil habitantes, contra 13,9 de não negros.
Há, ainda, uma incidência possivelmente maior de problemas de saúde mental: de cada dez suicídios em adolescentes em 2016, seis foram de jovens negros e quatro de brancos, segundo pesquisa do Ministério da Saúde publicada no ano passado.
3. Disparidades na saúde e na educação
Os problemas descritos acima são potencializados pelo menor acesso aos serviços públicos de saúde, aponta Harvard.
“Pessoas de cor recebem tratamento desigual quando interagem em sistemas como o de saúde e educação, além de terem menos acesso a educação e serviços de saúde de alta qualidade, a oportunidades econômicas e a caminhos para o acúmulo de riqueza”, diz o documento do Centro de Desenvolvimento infantil.
Mais uma vez, os números brasileiros apontam para um quadro parecido. Segundo levantamento do Ministério da Saúde, 67% do público do SUS (Sistema Único de Saúde) é negro. No entanto, a população negra realiza proporcionalmente menos consultas médicas e atendimentos de pré-natal.
E, entre os 10% de pessoas com menor renda no Brasil, 75% delas são pretas ou pardas.
Na educação, as disparidades persistem. Crianças negras de 0 a 3 anos têm percentual menor de matrículas em creches. Na outra ponta do ensino, 53,9% dos jovens declarados negros concluíram o ensino médio até os 19 anos — 20 pontos percentuais a menos que a taxa de jovens brancos, apontam dados de 2018 do movimento Todos Pela Educação.
4. Cuidadores mais fragilizados e ‘racismo indireto’
Os efeitos do estresse não se limitam às crianças: se estendem também aos pais e responsáveis por elas e, como em um efeito bumerangue, voltam a afetar as crianças indiretamente.
“Múltiplos estudos documentaram como os estresses da discriminação no dia a dia em pais e outros cuidadores, como ser associado a estereótipos negativos, têm efeitos nocivos no comportamento desses adultos e em sua saúde mental”, prossegue o Centro de Desenvolvimento Infantil.
Um dos estudos usados para embasar essa conclusão é uma revisão de dezenas de pesquisas clínicas feita em 2018, que aborda o que os pesquisadores chamam de “exposição indireta ao racismo”: mesmo quando as crianças não são alvo direto de ofensas ou violência racista, podem ficar traumatizadas ao testemunhar ou escutar sobre eventos que tenham afetado pessoas próximas a elas.
O estudo identificou, como efeito desse “racismo indireto”, impactos tanto em cuidadores (que tinham autoestima mais fragilizada) como nas crianças, que nasciam de mais partos prematuros, com menor peso ao nascer e mais chances de adoecer ao longo da vida ou de desenvolver depressão.
Fonte: Terra