quinta-feira, 10 de outubro de 2024

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Prefeito João Cleber divulga carta aberta aos Três Poderes pedindo clemência às famílias da Apyterewa; leia na íntegra

Carta ressalta os riscos de conflito na área e das potenciais consequências sociais para o município e para a região se 2 mil famílias forem forçadas a deixar a terra sem nenhum plano assistencial assergurado
O prefeito de São Félix do Xingu, João Cleber, fez um apelo aos Três Poderes para que os direitos de famílias da Apyterewa não sejam violados (Foto: Ascom PMSFX / Arquivo)

O prefeito de São Félix do Xingu, João Cleber (MDB), divulgou a carta aberta que enviou ao presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e demais representantes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O objetivo do documento é sensibilizar os Três Poderes sobre a dramática situação das quase 2 mil famílias que vivem na Apyterewa, área que está sendo alvo de uma operação de desintrusão para destinar o território à vivência do povo indígena Parakanã e de preservação ambiental.

Na carta, o prefeito ressalta o drama social das famílias, a truculência dos agentes federais e as diversas possíveis consequências sociais que o município pode sofrer, caso tenha de acolher com políticas assistenciais todas as famílias que terão de recomeçar a vida do zero sem a terra onde estavam acostumados a viver e trabalhar. E ainda, reforça que há risco de confronto se as tensões continuarem escalando entre as pessoas e os agentes públicos.

Para João Cleber, não há tentativa de negar o direito do povo Parakanã de viver na Apyterewa, mas sim de buscar soluções pacíficas, harmoniosas e que garantam os direitos fundamentais de ambos lados.

A Extensão Apyterewa está em processo de desintrusão para retirada de cerca de 2 mil famílias da área que será destinada à vivência dos indígenas da etnia Parakanã (Foto: Wesley Costa/ Fato Regional

 

Confira a carta na íntegra:

“EXMO. SENHOR PRESIDENTE DA REPÚBLICA, LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA,

Clemência. Não há outra palavra na língua portuguesa, que eu, João Cleber de Souza Torres, no uso de minhas atribuições como prefeito do município de São Félix do Xingu (PA), possa pedir ao senhor nesta carta aberta, em nome das mais de duas mil famílias que vivem na região da Apyterewa.

Estendo esse pedido ao EXMO. SENHOR MINISTRO DA JUSTIÇA, FLÁVIO DINO; ao EXMO. SENHOR PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, LUÍS ROBERTO BARROSO, SENHOR MINISTROCHEFE DA CASA CIVIL, RUY COSTA; ao EXMO. SENHOR SECRETÁRIO-GERAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, MÁRCIO MACEDO; ao EXMO. SENHOR PRESIDENTE DO SENADO, RODRIGO PACHECO; ao EXMO. SENHOR PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, ARTHUR LIRA ; e ao EXMO. GOVERNADOR DO PARÁ, HELDER BARBALHO.

O objetivo desta carta aberta aos três poderes do Brasil não é contestar a decisão de desintrusão que veio da Justiça Federal, mas apelar por clemência para conter a devastadora crise humanitária que se desenha naquele lugar após esta decisão.

Desde que as obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte incluíram como condicionante a demarcação da Terra Indígena Apyterewa – em São Félix do Xingu, uma angústia se criou: para onde iriam as famílias que lá habitavam e que plantaram naquela terra os seus sonhos e o seu sustento?

Várias soluções foram apontadas, como projetos de assentamento e indenizações. Mas essas tratativas dadas como certa, na prática, nunca ocorreram. E sem discussões mais amplas e diretas com a população da Extensão Apyterewa, essas famílias começaram a se sentir no direito de ocupar aquela área, onde há registros de moradia de não indígenas que remontam à década de 1940, como apontam associações independentes que fizeram levantamentos que contrapõem os laudos antropológicos feitos pela Funai. E muito anteriores à presença do povo Parakanã, que hoje reivindica o direito à terra.

A visita de uma comissão parlamentar da Assembleia Legislativa do Estado do Pará (Alepa), com deputados estaduais de diferentes posições políticas — incluindo o deputado Carlos Bordalo, do PT, presidente da Comissão de Direitos Humanos — comprovou que na Apyterewa hoje vivem famílias já assentadas e beneficiárias de programas de reforma agrária. E outras que ainda aguardam as indenizações prometidas, previstas nas condicionantes da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.

A grande preocupação do Município de São Félix do Xingu é o destino dessas famílias, que flutuam entre 1,6 mil e 2 mil, conforme apontam diferentes levantamentos feitos por órgãos federais. Sem perspectivas do que fazer, para onde ir e com qual recurso recomeçar a vida, que tipo de futuro essas pessoas podem esperar? O que irão fazer? É essa angústia e clima de ansiedade que vinha sendo alertado por parlamentares e entidades representativas do ocupantes da Apyterewa. Tamanho é o impacto psicossocial que temos, 8 suicídios já foram registrados entre moradores da área, diante do desespero e da incerteza. Uma das coisas que está em jogo é a confiança da população no poder público.

É importante dizer que se não houver um plano coordenado e bem alinhado para a saída dessas famílias que ocupam hoje a Apyterewa — caso realmente não haja outra opção a não ser a saída —, há um risco imenso de se criar um bolsão de pobreza e violência na região. Seria um custo com o qual a Prefeitura não teria como arcar criando um passivo economico, social e político enorme ao Governo do Pará e ao Governo Federal.

Essas pessoas, em sua maioria, só vivem da agropecuária e nunca tiveram outras alternativas de vida. Atualmente, cerca de 80% do território de São Félix do Xingu já é uma área reservada e destinada à preservação ambiental. O Município tem se esforçado, com apoio do governador Helder Barbalho, na estruturação de sistemas agroflorestais e outras técnicas de cultivo mais ecologicamente corretas, mas que ainda se encontram em fase de implantação e consolidação, sem capacidade de absorver todas essas pessoas.

Entre as muitas soluções apontadas está um redesenho da TI Apyterewa. Cabe ressaltar que se trata de uma área de grande extensão, com um total de mais de 774 mil hectares. Uma proposta pede a destinação de uma parte dessa área para abrigar essas famílias de forma mais ordenada. Não seria a primeira vez que esse imenso território seria redesenhado, já que em um dado momento, a área destinada ao povo Parakanã chegou a quase 1 milhão de hectares e foi redesenhada. Há precedente para esse planejamento. E os estudos que apontam o período de começo da presença do povo Parakanã nunca tiveram seus processos de análise concluídos.

Se faz necessário dizer que ninguém contesta o direito do povo Parakanã à terra, já que os próprios moradores já até haviam feito acordos com as lideranças indígenas — e há registro das reuniões — e conviviam pacificamente. O apelo feito neste momento é para que a operação de desintrusão (se assim tiver de ser) seja replanejada para o momento em que as soluções mais adequadas estejam bem definidas e os direitos fundamentais dessas pessoas estejam assegurados.

Enquanto não se chega a uma solução, reiteramos o pedido de suspensão da operação para que esses detalhes e procedimentos sejam realinhados. Infelizmente, um dos saldos dessa operação, além de princípios de confronto entre moradores e a Força Nacional; escolas e igrejas fechadas; casas desmontadas; proibição da entrada de alimentos e água; foi a perda da vida do agricultor Ozéas Ribeiro, de 37 anos, vitimado por um disparo de um agente da Força Nacional num suposto embate no qual um homem sozinho desarmado teria tentado enfrentar um grupo de agentes treinados e armados. Não precisamos perder mais vidas. E infelizmente, se continuarmos nesse ritmo, será impossível conter a explosão desse barril de pólvora que se tornou a Apyterewa desde o dia 2 de outubro de 2023, quando as notificações às famílias começaram. Devido aos ânimos e dimensões da terra, tememos um confronto que resulte em um episódio mais lamentável que o Massacre de Eldorado do Carajás.

Tamanha é a descrença do povo no poder público que lá se encontra neste momento, estamos vendo pessoas se recusando a fazer novos cadastros junto ao Incra, algo que vem sendo contabilizado nos boletins da operação, divulgados periodicamente pelo Governo Federal. Esse é um passivo terrível. Como o poder público há de cuidar de um povo se esse povo não confia em seus governantes e suas intenções?

Após conversa com o nosso governador Helder Barbalho, Vossa Excelência deu a ele, a garantia de suspensão da operação para justamente dar o devido planejamento psicossocial e assistencial para a conclusão mais adequada e com menos prejuízos possíveis ao povo trabalhador e de boa-fé da Apyterewa. Ocorre que na prática, a operação continua e com o mesmo nível de truculência por parte das forças de segurança. De modo oficial, os canais de comunicação do Governo Federal seguem dizendo que a operação será concluída no dia 31 de outubro. Até mesmo o Excelentíssimo Ministro Flávio Dino assegurou a suspensão. Mas nenhum agente sequer saiu da área e o clima de tensão segue.

Diante do exposto, Senhor Presidente, a situação na terra Apyterewa atinge seu ponto mais crítico. Diariamente, recebemos relatos angustiantes de pessoas que resistem em deixar o que construíram. Nossa prefeitura, mesmo com os melhores esforços, não possuirá a estrutura para conter a crescente onda de revolta.

Imploramos por sua intervenção pessoal e urgente, buscando uma solução pacífica para este iminente conflito. Em nome do lema de seu governo, ‘União e Reconstrução’, clamo em nome deste povo e por esta causa. Sem sua ação direta, tememos um massacre e um marco trágico em nossa história. O destino da Apyterewa e de seus habitantes clama por sua liderança. O futuro deles depende hoje da sua decidida ação e da união harmoniosa dos três poderes.

Muito obrigado pela atenção,

João Cleber de Souza Torres, prefeito de São Félix do Xingu, Pará”

(Da Redação do Fato Regional)


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